Atualizado: 22 de abr de 2021
(Poema clássico de Edgar Allan Poe, na histórica histórica por Fernando Pessoa)
Numa meia-noite agreste,
Enquanto lia, lento
e tristes, vagos, curiosos,
tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia,
ouvi o que parecia,
O som de alguém que batia
levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse,
"Estão batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro!
Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro,
urdia as sombras desiguais.
Como eu queria a madrugada,
toda a noite aos livros dada
Pra esquecer, em vão, a amada,
hoje entre hostes celestiais
Essa cujo nome, sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo,
cada reposteiro roxo,
Me incutia, urdia estranhos terrores
nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido fôrça,
Eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo,
entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia
pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante,
já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora,
decerto me desculpais;
Mas eu estava adormecendo,
quando viestes batendo,
Tão levemente batendo,
batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos,
franqueando-os, meus umbrais
Noite,noite e nada mais.
A treva enorme fitando,
fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos
sonhando que os
ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita,
a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita,
foi um nome cheio de ais
Eu o disse, o nome dela,
e o eco disse aos meus ais, .
Isso só e nada mais.
Para dentro estão volvendo,
toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som
batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu,
"aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela,
e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía
pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que,
com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo
dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento,
não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento
pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena,
que há por sobre meus umbrais,
Foi,pousou, e nada mais.
E esta ave estranha
e escura fez sorrir minha amargura,
Com o solene decoro
de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosqueado",
disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado,
lá das trevas infernais!
Diga-me, "qual é o teu nome
lá nas trevas infernais?"
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir
este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido,
tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido .
que ninguém terá havido,
Que uma ave tenha tido,
pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto
que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto,
nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela
a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez,
e eu, em meu pensamento,
Perdido, murmurei lento,
"Amigo, sonhos - mortais
Todos todos já se foram.
Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida,
por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu,
"são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono,
que a desgraça e o abandono,
Seguiram até que o entono .
da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesperança
de seu canto cheio de ais,
Era este, "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura
sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela,
do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira,
pensei de muita maneira,
Que queria esta ave agoureira
dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira
dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais!".
Comigo isto discorrendo,
mas nem sílaba dizendo,
À ave que na minha alma,
cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando,
a cabeça reclinando,
No veludo onde a luz punha
vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela,
entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso,
como cheio dum incenso,
Que anjos dessem,
cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse:
"deu-te Deus, por anjos concedeu-te,
O esquecimento; valeu-te.
Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome daquela que não esqueces,
e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais"
"Profeta", disse eu,
"profeta - ou demônio,
ou essa ave preta?
Fosse diabo ou tempestade,
quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo,
a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo,
dizei a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo,
para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu,
"profeta - ou demônio,
ou essa ave preta!?
Pelo Deus ante:
quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida
se no Edem de outra vida,
Verá essa hoje perdida,
entre hostes celestiais,
Essa cujo nome
sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte,
essa ave ou o diabo!",
Eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade!
Torna às trevas infernais!
Não deixes pena,
que ateste a mentira
que disseste!
Minha solidão me reste!
Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito,
e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite que infinda,
está ainda, no alvo busto de Atena
que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor.
de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombr.
no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!